Uma solução para um problema... Parte 1
Durante uma das aulas de animação 2D cobrei de um aluno o projeto que não havia me entregue e o trabalho de roteiro dele até porque ministro aulas de Animação e Roteiro para jogos. Foi então que o roteiro surgiu de uma conversa com este aluno da graduação de jogos.
A ideia dele, girava em torno de uma personagem (sem gênero definido ainda) que acorda 20 anos no futuro (com relação ao tempo presente, 2019) e descobre que o mundo mudou.
Como a ideia era muito vaga e genérica ele só havia mencionado que existiriam zumbis no jogo. O que piora a situação é: já estamos entupidos de jogos, no mercado, com temáticas de zumbis e isso acaba por ser mais um jogo do mesmo gênero do que uma novidade e pode levar a um grande fracasso a ideia dele. Ideia esta que poderia ser promissora. Preferi então fazer um trabalho de viagem no tempo, lembrando o que havia 20 anos atrás. Verificamos então o que era comum naquela época e como chegamos onde estamos hoje. Preferi também ir mais ainda ao passado e começamos a pesquisar coisas simples do final dos anos 1980.
Essa pesquisa focou nos itens que hoje são comuns como computadores, celulares, lojas de conveniência e outros. Roupas não nos focamos pois elas mudam facilmente. Com essas informações sabemos onde ir e podemos verificar por onde a tecnologia evoluiu, passou e chegou. Obviamente que alguns muitos serviços que existiam hoje e são comuns, antes eram inovadores ou nem se imaginavam, mas a tela de buscas do Google, que tinha publicidade, nunca mais voltou ao modelo de 1998, ano de seu lançamento. Evoluções ocorrem e sejamos gratos a elas...
Salto temporal...
Decidimos que seria mais interessante começar nos anos 90 (tempo este que tem informações abundantes e a geração atual viveu e lembra bastante) e fazer o salto temporal do passado para o presente, partindo de 1990, era mais fácil do que começar no tempo presente e ir pra frente 20 anos, onde não temos ideia do que existirá neste futuro. Mais difícil é criar algo do que existe em vez de fazer um trabalho de futurismo desconexo com coisas que não se tem ideia. A história é que começa no passado e nos alcança para, aí sim, começar a desenvolver o jogo que estamos pensando.
Definindo o tempo de transição entre o início da história e o início do jogo continuamos a conversa e preferi conduzir o diálogo para tentar preservar ao máximo a ideia original. Um salto de 20 anos, uma mulher e zumbis. Nada muito diferente do que temos, hoje, de sobra. Sugeri então que a personagem principal seria uma mulher nos seus 20 anos, que estuda para prestar o vestibular de medicina gerando dificuldades relevantes ao roteiro da personagem. Ao viver sua vida normalmente, a jovem adulta, cheia de vida, ideias e vontades, tinha uma rotina regada por estudos intensos e cursinho até que, num certo dia, sofreu um acidente que a deixou em coma durante 20 anos.
Ao garantir a passagem de 2 décadas nas ideias do roteiro antes do estado atual do jogo, consigo preservar o salto temporal original da ideia do aluno.
Na disciplina de roteiros...
Ao fazer as aulas de roteiros descobri algumas coisas interessantes que me chamaram a atenção pois são fios condutores dos trabalhos de audiovisual e que também servem para literatura, teatro, TV e diversos outros.
Todo roteiro tem alguns pontos que podem ser divididos entre duplas ou trios e como estamos falando do roteiro de um jogo digital...
O ser humano vive nas duplas. Homens e mulheres; altos e baixos; belos e feios; gordos e magros; fortes e fracos; grandes e pequenos e por aí vai... Sem essa dualidade de coisas, ou seja, os opostos, todo o raciocínio do ser humano, como é hoje, não haveria. Até a luz tem dualidade, partícula ou onda. A química é dupla, orgânica ou inorgânica... E assim segue...
A maioria dos jogos tem um vilão e um mocinho, mesmo que o mocinho seja o jogador e o vilão não apareça logo de cara. A maioria dos jogos antigos, antes dos anos 1985, não tinham história, só mecânicas. A maioria das grandes franquias de vídeo games hoje nasceram nos anos 1980 e tiveram sua estabilização nos anos 1990. Chegar no que temos hoje é só repetição de detalhes e melhoria gráfica dos mesmos.
A maioria das obras do audiovisual, se não a sua totalidade, passa por três pontos cruciais: 1 - apresentação dos contextos e das personagens; 2 - a confrontação dos motivos e pré supostos de cada personagem e; 3 - a resolução desses conflitos. Outra forma de mostrar essas informações é: início (apresentação), meio (clímax) e o fim (a resolução do problema). Como organizar essas três informações é a função do roteiro e eram esses três fatores que estávamos conversando. Quando se define onde e em que tempo esses 3 fatores aparecem é o tipo de trabalho que o projeto audiovisual se propõe, variando entre drama até a ação.
No meio da chuva de informações também lembrei de 5 perguntas básicas que todo texto literário precisa responder: quem; como; quando; onde; por que? Se o texto não conseguir responder essas perguntas, ou está muito cru ou está incompleto e precisa ser retrabalhado.
Ao definir na ideia os fatores de 'o quando e o como' (o salto temporal e o coma da personagem principal) faltavam as outras perguntas para responder.
Melhorando o contexto da história...
Por ter ocorrido um acidente com a personagem principal deixa-se em aberto um ponto importante do roteiro que não necessariamente será respondido no inicio da obra vamos então ao "onde estou?" que tem real importância para as ideias do jogo.
A personagem ficou desacordada por 20 anos e isso cria uma mentalidade desconexa da realidade, fora que as memórias da personagem são da época quando ela tinha 20 anos e não com 40 anos como ela está na realidade da proposta. Propositalmente criar um conflito, que é imperativo com a personagem, gera, inevitavelmente, um dos muitos clímax que todo roteiro tem que ter. Sem esses pontos de tensão o roteiro perde sua relevância para os espectadores das obras (literárias, dramaturgia ou audiovisual). Sem a tensão o roteiro se torna apenas mais um combinado de cenas e situações aleatórias que foram colocadas no projeto...
De volta a proposta do jogo, quando a personagem acorda, é quando o jogo realmente começa. O jogador pega no controle e passa por uma série de cenários curtos. Sai da instalação que se encontra e observa que é de dia, numa cidade, caindo aos pedaços. Parece que houve uma guerra. Onde ela se encontra? Não se sabe.
Ao passar por alguns cenários o jogador percebe que só tem uma faca, uma mochila com alguns itens, está vestida com roupas que não reconhece, e tem uma pistola com algumas balas. Sai andando no meio dos destroços e ouve um barulho. Mesmo assustada continua andando e o barulho aumenta. Até que um conjunto de animais estranhos a ataca.
O que faz um jogo é exatamente seu gameplay (jogabilidade) e ao apresentar isso logo de cara mostra o quanto as mecânicas são mais importantes, no início, do que a história em si.
A personagem é ex praticante de artes marciais. Antes de decidir virar médica frequentou academias de lutas. Essas memórias ela ainda tem apesar dos reflexos lentos. Enfrenta os animais agressivos do ambiente e nos casos extremos usa a faca e atira. Ao fazer muito barulho um outro bicho, maior que os anteriores, aparece. A personagem leva um susto. Usa suas habilidades contra o atacante e vence usando a ultima bala da sua arma.
O momento de tensão do roteiro define os pontos de confronto do jogo. Sem esses pontos, o jogo perde sua principal característica: prender a atenção do jogador nos desafios inesperados.
Ao sobreviver o ataque de um oponente maior e mais rápido, outros humanos aparecem e perguntam "Quem é você? De onde veio?" e a personagem responde "Onde estamos? Que tempo é este?" e assim termina primeira fase do jogo. Num diálogo que é mais vago do que perdido para tentar fazer sentido no meio de um contexto totalmente diferente do original.
Até aqui ótimo mas continua na semana que vem...
Ass.: Thiago Sardenberg
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